1 de março de 2014

À VIVIANE, COM CARINHO


Querida Viviane, confesso que dois sentimentos me assaltaram na quinta-feira pela manhã, ao ler o jornal. É que me chamou a atenção a tua entrevista. O primeiro foi um sentimento chão, uma coisa de bem-estar e alegria - Viviane, a poeta original, a voz inigualável, sedução à flor da pele é, por tudo isso, leitura obrigatória.
O segundo foi um atordoamento. O que dizia a inspirada Viviane Mosé? A matéria terá sido tão mal editada que levasse a esse conjunto de frases amontoadas, tanto na forma como no sentido? Seria possível que estivesse falando sobre assunto de tamanha importância, como é a violência nas cidades, de maneira tão superficial, a poeta que tanto admiro?
Ali estava ela, belíssima. Difícil de acreditar.

Levei o jornal a uma amiga. Pedi que lesse para me certificar de que havia razão para o espanto. Ela confirmou e lembrou um verso de Viviane:

"muitas doenças que as pessoas têm são poemas presos ".

Tem razão, Viviane. Esses poemas presos vão pouco a pouco se transformando numa doença crônica que assolou nossa sociedade: a violência. Como curar a violência que nos corrói? Com mais violência, armas mais potentes, feitas para a guerra, como os robocops, que ora nos apresentam?

No caso dos manifestantes, por que a polícia não agiu logo? Por que esperava que os black blocs começassem a quebrar, para então sair batendo não importa em quem?
Se a aprovação popular ao movimento de início foi tão grande (parecia que as pessoas lavavam a alma), em seguida decaiu em virtude do medo. Quem quer morrer, ser preso, perder um olho, ser derrubado na rua, inalar gás de pimenta? As pessoas já passam tanto trabalho. Ainda vão arranjar problemas? As manifestações populares, no Brasil cordial, não levam a tanto, em comparação com o que se vê pelo mundo.

Considero absolutamente ingênuo dizer que a polícia não estava interessada no caos. Qualquer cidadão poderia ver, da calçada ou de uma janela, o momento em que os blacks blocs iam agir. Por que não os impedia? Em alguns momentos havia 600, 700 policiais para conter 50 mascarados? Por que ficavam cozinhando ao máximo as provocações? Por que não os tiravam de circulação antes da coisa eclodir? Recolhe, leva para averiguações, pronto. Mas não. E de repente liberava todo o ódio represado nas aulinhas de lavagem cerebral. É humano ensinar a bater? Por que não foram a fundo para identificar pessoas que não eram manifestantes, mas que estavam em lugares estratégicos, fomentando a fúria? 

"Morreu uma policial militar de 22 anos da UPP e não houve uma única manifestação por ela", observa Viviane. E por que haveria? Por conta das propagandas institucionais que mostram jovens sorridentes satisfeitos com a "liberdade" trazida pelas UPPs? 
Policiais morrem, é verdade. Mas estão a serviço. Conhecem os riscos, aceitaram os treinamentos, submeteram-se a regras. E as regras quais são? Criminalizar os pobres, quase sempre negros, prendê-los, achacá-los. Logo, por que fazer manifestações por policiais mortos, se eles escolheram defender a injustiça para com os pobres? Além disso, eles também perderam com as UPPs. Pergunte ao Capitão Nascimento.
Jornalistas também morrem ao fazer cobertura de conflitos. Também o cinegrafista atingido e morto estava no exercício de uma função que (ele sabia) oferece riscos. Desde que há cobertura de guerra os jornalistas morrem. Poderiam não ir, mas vão. É um chamado da profissão.

Como relação às UPPs, por que as comunidades precisam delas? Por causa do tráfico de drogas, é a desculpa. Para proteger os moradores dos traficantes. E protegem? Enquanto houver proibição às drogas haverá traficantes, tiroteios e policiais corruptos. E as guerras (todas) são promovidas não só pelos negociantes das substâncias proibidas, mas principalmente pelos fabricantes de armas. Quanto maior é o perigo, maior a necessidade de armas, cada vez mais caras e letais. 

"Como sociedade, não se pode deixar a violência como está". Não Viviane, você não falou isso, diga que não, por favor. Diga que foi torturada, que ameaçaram cortar os seus gerânios. Eu vou aceitar. Essa frase é muito feia. Como conter a violência se a política do governo é justamente investir na violência? Não podemos deixar a violência como está mas devemos dar créditos à polícia? Clemência, é o que você pede?

É "uma pena enfraquecer as UPPs"? Talvez já tenham nascido enfraquecidas porque chegaram como invasoras. Como respeitar uma instituição que é responsável por tantas mortes? Como conviver com aqueles que invadem as casas, humilham, roubam, abrem as mochilas, as bolsas, debocham da população submetida? Não é a mesma coisa que dar de cara com o torturador, todos os dias? Na favela não existe Comissão da Verdade. A verdade tem que ser engolida, sem água, num soluço. 
Não existe paz armada, Viviane. Isso se chama dominação.
Queremos menos violência? Busquemos menos intromissão do Estado na nossa vida privada. Tentemos nos curar das políticas proibicionistas, da polícia incapaz, dos preconceitos raciais. 

Quanto à imagem já tão gasta do Brasil como o gigante adormecido que talvez acorde porque "a educação básica vem  melhorando", é de um otimismo pueril. A educação não vem melhorando. Os resultados estão aí, na falta de consciência crítica, na  precariedade da linguagem, na falta de motivação, na falta de condições para fazer escolhas, em que pesem todos os esforços, sacrifícios e protestos dos professores, dos quais saem sempre derrotados ?  

Reafirmo, no entanto, minha admiração pela poeta. Acho que foi um mau momento, uma entrevista infeliz. Acontece. Fiquemos com o que é maior em Viviane Mosé:

muitas doenças que as pessoas têm
são poemas presos
abcessos tumores nódulos pedras são palavras
calcificadas
poemas sem vazão

mesmo os cravos pretos espinhas cabelo encravado
prisão de ventre poderia um dia ter sido poema 

pessoas às vezes adoecem de gostar de palavra seca
palavra boa é palavra líquida
escorrendo em estado de lágrima


...


2 comentários:

  1. Muito bom seu comentário, Helena. Eu vi a entrevista da Viviane e tb fiquei perplexa com o que ouvi.
    Lamento o que vou dizer, mas é o meu sentimento. Está cada vez mais difícil produzir pensamentos consistentes.


    nesse país e em todo o mundo pós-moderno.

    Estou lendo "A Civilização do Espetáculo" de Vargas Llosa e recomendo.

    Bjs.

    Elida Escaciota

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  2. Parabéns pelo texto Helena, quem sabe a Viviane possa revisitar o que disse, uma vez que também é filósofa e, por dever da profissão, poderia fazer um exercício de autocrítica. . beijos Iracema Macedo

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