22 de dezembro de 2009

JOANYR DE OLIVEIRA



Um pouco por falta de tempo, um pouco por exaustão, deixei de registrar aqui a passagem do poeta Joanyr de Oliveira, que se foi do nosso convívio no dia 5 de dezembro. Embora o que chamamos morte seja sempre a parte mais previsível de nossa vida continuamos nos surpreendendo e até lastimando as perdas, ao invés de nos regozijarmos pela libertação de quem se vai. Nós sim ficamos ainda, presos, angustiados, fazendo sempre as mesmas perguntas irrespondíveis sobre o sentido da vida.
Joanyr de Oliveira foi um sincero amigo da poetisa Astrid Cabral, e é a ela que passo a palavra neste espaço para homenageá-lo.


Paladino da causa literária, figura pioneira na vida intelectual de Brasília, organizador de importantes antologias, competente funcionário público, pastor evangélico, jornalista atuante, membro de respeitáveis instituições, admirável contista, Joanyr de Oliveira foi antes de tudo poeta.
Nascido em Aimorés, MG, nos idos de 1933, viveu em inúmeras cidades brasileiras e norte-americanas até retornar em definitivo à Brasília, aonde veio a falecer a 6 de dezembro corrente.
Autor de vasta e premiada obra, em poesia e prosa (total de 19 títulos individuais, mais 6 antologias organizadas por ele), foi saudado por críticos ilustres além de reconhecido e amado por seus colegas de ofício.

Pequena amostra de seu trabalho:

Sapato

Humílimo é o teu ofício.
No lodo de humanos mares
fluis tua dor, submisso.
No delíquio dos cadarços
o soluçar das palmilhas.
O couro ecoa os mugidos
maduros sobre as campinas.
Cascos, ruminando marchas,
e o livre olhar metafísico.
Presa de intangíveis teias
teu ser; e teu corpo atado
à âncora má dos artelhos.
Percorres infantarias,
os balés, as cosmonaves,
o compasso azul ou plúmbeo,
mas frutificas lamúrias.
Sejas roto ou cromo (espelho,
de ouro referência, lume?)
sob a planta áspera dos pés
tudo te esmaga e confunde.
(Pisa em teus ombros o mundo.)


Epitáfio

Os casulos do silêncio
recolhem meu rosto,
meu canto e meu nome.

Entre arcanjos e estrelas
minha essência navega
o esplendor dos milênios.

Doce é o sabor do infinito.



Pastoreio

Fui pastor de destinos
soltos nas ventanias.

Fui pastor de sonhos,
de abismos e insônias.

Hoje pastoreio as horas,
colho o mel das palavras.

Pastoreio metáforas
na inocência do branco.

Pastoreio murmúrios
diluídos nos ermos.

Pastoreio estribilhos
na memória e nas veias.

Ovelhas não navegam
as águas de meus olhos.

Ovelhas não ruminam
o itinerário de meu verbo.

Ovelhas não burilam
a sofreguidão de meu rosto.

Hoje sem dardos e cajado,
pastoreio a mim mesmo..
A hora de Deus

Estará sempre o homem
longe da hora de Deus?
O céu dispensa calendários
e ponteiros, a colher o infinito.
O homem se perde a cada instante
na imensidão do tempo.
A hora do homem se cansa
entre luzes e noites.

A hora de Deus flutua,
intocada, acima de todas as galáxias.

Se acaso me aflijo ou me aproximo
dos impérios da morte,
Deus acaricia o tremor de meu rosto
com a mais doce palavra.
Assim, me ergue e me restaura.
Canções de vida me visitam.

A hora de Deus não conhece
as amarras do tempo:
traz firmíssimo fulgor
a quantos se estendem
em seus ombros eternos.

A hora do homem: instável e escura.
Sempre e sempre um perigo.

_ Ensina-me, ó Deus, a acertar
os rumos de meus passos
pelo esplendor de tua hora.


Escrúpulo

Deito o poema na aragem,
longe dos sacrilégios.

Os vassalos do metal,
os abismos, os delírios,
os tímpanos de pedra e cal,
as destras mãos na rapina
e as sinistras nos fuzis,
os decibéis desvairados
com quatro pedras nas mãos,
as volúpias dos cifrões,
os parlatórios e fossas,
as fomes palacianas,
os lobos condecorados
pelos guantes do Sistema

não fazem jus ao poema.



(Nota e seleção de Astrid Cabral)






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