27 de setembro de 2009

LILA RIPOLL

Já sabemos que os poetas mortos ressuscitam vez ou outra por causa dos poetas que não os deixam morrer de todo. Sempre haverá o poeta que se lembra de um outro que não é divulgado, como a maioria, mas que num momento impreciso crescerá aos ouvidos e aos olhos dos que o descobrem ou que o relembram. Assim é a arte: desdobra-se infinitamente a contemplar todos aqueles que a procuram e até os que não.
Tudo isso para lembrar a poesia de Lila Ripoll, que chegou pela voz de um amigo, que por sua vez a tinha recebido de outro.
Perpassando tudo, a poesia dessa gaúcha de Quaraí nascida em 1905, e que hoje dá nome a um concurso instituído pela Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul.
Além de poeta, militante política.
"Lila foi para Porto Alegre ainda jovem, e se formou no Conservatório de Música. Nos anos 30, após o assassinato de Waldemar Ripoll, seu irmão de criação, iniciou uma militância política que jamais abandonaria. Mais tarde dirigiu o Departamenteo Cultural do Sindicato dos Metalúrgicos de Porto alegre e candidatou-se a deputada pelo Partido Comunista. Presidiu a seção regional da UBE e organizou em Porto Alegre o 4º Congresso Brasileirio de Escitores. Em 1951 recebe o prêmio Pablo Nerudo da Paz. Quando do golpe militar de 1964 foi presa e libertada pouco tempo depois em função do câncer que a vitimaria. Morre em fevereiro de 1967, deixando uma obra pequena e quase desconhecida. Desde então, não tem mais seus livros editados."
Este é o texto da orelha da antologia Ilha difícil, publicada em 1987 pela Editora da Universidade Federal do Rio Grande do sul, de onde retiro os poemas que seguem.

Retrato

Chego junto do espelho. Olho meu rosto.
Retrato de uma moça sem beleza.
Dois grandes olhos tristes como agosto,
olhando para tudo com tristeza!

Pequeno rosto oval. Lábios fechados
para não revelar o meu segredo...
Os cabelos mostrando, sem cuidados,
Uns fios brancos que chegaram cedo.

A longa testa aberta, pensativa.
No meio um traço, leve, vertical,
indicando uma idéia muito viva
e os sérios pensamentos: - o meu mal!...

O corpo bem magrinho e pequenino.
- Sete palmos de altura, com certeza. -
Tamanho de qualquer guri menino
que a idade, a gente fica na incerteza!

E nada mais. A alma? Ninguém vê.
O coração? Coitado. Está bem doente.
Não ama. Não odeia. Já não crê....
E a tudo vive alheio, indiferente!...

Meu retrato. Eis aí: bem igualzinho;
O espelho é meu amigo. Nunca mente.
No meu quarto, ele é o móvel mais velhinho.

E sabe desde quando estou descrente!...


Vim ao mundo em agosto

Sou triste de nascença e sem remédio.
vim ao mundo no triste mês de agosto.
o mês fatal das chuvas e do tédio,
e nasci quando o sol estava posto.
Vim ao mundo chorando ...(o meu presságio!)
Um vento mau marcava na vidraça
o plangente compasso de um adágio
anunciando agoirento uma desgraça.

Sou triste. É irremediável este mal.
e eu não quero curar minha tristeza.
Só ela para mim tem sido leal.
Na minha via-sacra da incerteza.

Sou triste de nascença. É mal sem cura.
A vida não desfez meu nascimento.
Sou a menina triste e sem ventura,
que em agosto nasceu, com chuva e vento.

Aviso

Um pássaro bateu as asas na janela,
por engano.

Os vidros estavam invisíveis
sob a luz.

Ah! não te enganes também
com minha alma!

24 de setembro de 2009

CASA COR - uma tendência


O assunto está ficando quente, e a cada vez dia mais pessoas discutem a questão da legalização das drogas. Tudo pode acontecer. Um dia acabou a guerra do Vietnã, aconteceu Woodstock, foi derrubado o Muro de Berlim. Quem garante que de uma hora para outra os homens não recuperem a coragem?

Le Monde diplomatique Brasil traz na edição de setembro nove páginas essenciais para a leitura e esclarecimento do público em geral, não apenas para adeptos e simpatizantes, porque relata, sob vários enfoques, a situação e os motivos por que até hoje as drogas não estão legalizadas. Tudo serve para desfazer o preconceito.

John Grieve, especialista da Unidade de Inteligência Criminal da Scotland Yard; Tiago Rodrigues, professor credenciado do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos da UFF; Marco Mari, cientista social, membro dos Coletivos Marcha da Maconha e D.A.R; Caco Barcellos, entrevistado por Maíra Kubík Mano; Luciana Boiteaux, professora de Direito Penal e coordendora do Grupo de Pesquisas de Política de Drogas e Direitos Humanos da FND/UFRJ e Victor Palomo, psiquiatra, formam o rol de pessoas que abordam o assunto da legalização a partir de suas áreas de atuação.

Reproduzo um trecho: "O mercado de drogas é comandado pela demanda e milhões de pessoas demandam drogas atualmente ilegais. Se a produção, suprimento e uso de algumas drogas são criminalizados, cria-se um vazio que é preenchido pelo crime organizado" (John Grieve)

ou um título:

"Aumenta o consumo. O proibicionismo falhou"

Vejam portanto que tenho muitos parceiros na propagação desta idéia. E de peso. Nada de maconheirinho chinelo de quem as classes dominantes fazem pouco. Tudo gente boa, ocupando cargos importantes na sociedade.
Por isso aproveito para coisas mais amenas, como a decoração, por exemplo, e sugiro a nova tendência para o verão que se avizinha, apesar do mau tempo de agora. E isso vale para tudo.

18 de setembro de 2009

LEGALIZAÇÃO DAS DROGAS - AINDA


Os brancos pobres são negros suspeitos
Os negros pobres são negros culpados
(Ângelo Alfonsin)


Como vocês sabem, este assunto não tem fim, e como agora recebo muito material (me tornei fiel depositária) é justo voltar ao assunto, não muito, para não cansá-lo, caro leitor, mas para defender um direito individual e buscar a garantia de vida das pessoas que moram em locais de risco, ou seja, em toda a cidade do Rio de Janeiro. De maio para cá, quantas pessoas já morreram, senhoras autoridades? Tudo isso porque as plantinhas crescem. Inacreditável!
A volta também se justifica pela simpática resenha escrita por Leonardo Cazes para o meu baseado em quê?, publicado no blog sobre drogas d´O Globo, agora um parceiro. O endereço é http://oglobo.globo.com/blogs/sobredrogas, para quem se interessar.
E já que me refiro a ela, vale trazer à tona o primeiro comentário espontâneo sobre o livro, publicado em maio, por ocasião da Marcha da Maconha.


baseado em quê?
O fininho que satisfaz.

Caminhando na praia de Ipanema me atraiu a moça sentada na areia. Não me era estranha, finco o olhar e reconheço a itabirana Gisele Bragança. Tirei a moça da praia e juntas, tricotando notícias da Cidadezinha, vimos passar a Marcha da Maconha.
Na passeata, umas 300 pessoas. Entre poucos bichos-grilos predominou a rapaziada pequeno-burguesa. Eles são jovens e poetizam no asfalto da zona sul palavras de ordem: “ei, ei, polícia, maconha é uma delícia!/Não tenha vergonha de mostrar a sua cara na marcha da maconha!/Liberdade pra plantar”. No palanque desmoralizaram o movimento quando repetiram o fim religioso da Erva. Palha! Velhas práticas. Palha!
Fumar maconha não podia, afinal, a polícia também estava lá. Uns, de óculos escuros e cara fechada; outros, clarinhos, uniformizados de branco, bermuda e camiseta, não usavam óculos e sorriam.
A Marcha do Rio — pô! maconheiro não marcha, caminha, passeia —, teve a presença do ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc. A fala do ministro, além dos indispensáveis dados estatísticos, fez apenas revelar nomes e cargos do staff do Governo Lula, defensores de novas políticas públicas pra Erva. Mais nada, tudo a repetição da descriminalização, como é de interesse do tirano pós-moderno, o Mercado.
O grande barato do movimento ficou por conta da contribuição definitiva da escritora Helena Ortiz, com a publicação do livrinho baseado em quê? 46 páginas feitas rapidinho pra serem lançadas na Marcha da Diamba. E, em não sabendo no que ia dar, sem dar bandeira, foi o que ficou de consistente do movimento carioca.
O livro da Ortiz é um tapetinho de retalhos construído a partir de imeios entre duas escritoras e queridas amigas, Rita e Helena. Costurado com recortes de jornais e depoimento de maconheiro véio, chegou no Posto 9 um livro despretensioso, intimista e corretíssimo na abordagem da relação homem-maconha.
Começa assim: Rita, a observadora de formigas quer passar a limpo sua vida clandestina. Seu desejo é ardente manifesto de liberdade. Politizada pela comuna do formigueiro, quer aproveitar a marolinha democrática e oferecer seus segredos de estimação à nobre causa.
Rita quer celebrar a vida, relembrar e narrar experiência vivida a partir de 1969 até 2009, delimitou o tempo histórico entre dois séculos e 40 anos de maconheira. Maconheira, Rita não aceita a designação neoliberal de Usuária, ela é maconheira. Isto
posto, convidou pro banquete a amiga Helena. Poeta sem urgência, Rita quer que a Helena, talentosa na prosa, se ocupe de sua memória. Nesta data-limite o livro sustenta a narrativa em defesa da liberação geral e imediata da Erva.
Baseado em quê? é o maior barato! Quer saber mais escreva para
baseadoemque@gmail.com
Ei meninas, eu também sou tupiniquim, maconheira como vocês!


Cristina Silveira, do Rio, no dia 10 de maio de 2009.

15 de setembro de 2009

NOTÍCIAS


7 de fevereiro de 1915
10 de setembro de 2009



Todos os dias, quando acordamos do sono - morte provisória a que nos entregamos sem medo - pensamos: viver o dia de hoje.
Não estamos doentes (pelo menos até agora não sabemos de nada). O tempo passa célere. Já retornamos para casa. O cérebro trabalhou - quanto! As pequenas apreensões, as quedas livres.

Estamos vivos, é isso.
As notícias que chegam pelo telefone, pela internet, pela televisão vão sendo armazenadas em menor ou maior escala de cuidados.
Mas quando a morte - a verdadeira, nos abarca, quando morre uma pessoa muito próxima: pai, mãe, filho - não importam as guerras, os negócios, a fome no mundo, o tédio fashion, as mortes por petróleo. não só estamos junto ao próximo. Somos o próximo.
E então passamos pelos trâmites de praxe. Quem inventou a praxe?
Enterramos nosso morto. e voltamos para a nossa vida. O mundo segue sem especiarias. Aguardamos a nossa vez, disfarçadamente.

Tudo isso é para contar que minha mãe foi encontrar com o seu amado. É o que penso e espero, assim como espero que minha filha, grande (e eu pequena) me espere do outro lado. Voltaremos? Existirá ainda este mundo? Serei sua filha? Quem me escolherá para pai? Serei mãe de meu marido?
Riam, os que quiserem, da minha crença. Ela me traz alento e basta.
Geni Ortiz. Um nome curto, um nome que se resolve fácil. Ortiz o do marido, Adriano, que amou sobre tudo e sobre Deus. Um bonito marido, de fato. E corajoso. Não aceitou assinar ficha no PC porque não iria dedicar integralmente sua vida ao partido com cinco mulheres em casa. Lutou em 30 e depois outras lutas. Dedicaram-se, os dois, toda uma vida. Ela havia se formado na Escola Normal, mas abdicou do trabalho fora. Abdicou? Sabe-se lá o que conversam os casais.
Registro aqui a sua foto de moça, e a de meu pai, quando são mais bonitos os sonhos, e o amor esplende.

ANTONIO OLINTO



Morreu o poeta. Mais um. Desta vez foi o poeta Antonio Olinto.

A imprensa deu destaque. Antonio Olinto era um poeta importante, com uma obra extensa e uma movimentada atuação política, além de ser membro da ABL.
Também tinha uma peculiaridade que os jornais não informam, mas que importa: lia os novos. Interessava-se por eles. Coisa rara.

Desde que este blog existe, morreram Idea Vilariño, Mário Benedetti, Rodrigo de Souza Leão, Anibal Beça e Antonio Olinto. Fora os que não conheci.
Fico triste. Já são tão poucos.
Além disso, ninguém me informa que nasceu um poeta. Quisera saber. Mas como sabê-lo? Certamente entre tantos nascimentos terá nascido um, ou mais. Sempre poucos. Um dia saberão, mas quando? E eu, saberei que o poeta nasceu e viverá?
Não. Só sei que se vão e a sua poesia, muitas vezes, se vai com eles. Às vezes retorna iluminando o sentimento de um leitor jamais imaginado. E então, contrariando os que dizem que poesia não serve para nada, terá servido. E terá trazido ao mundo, novamente, o poeta.
Abaixo, o que deu na imprensa, para aqueles que não sabem quem foi Antonio Olinto. Mas antes, um poema

O crime da máquina


A máquina rodou só
nos trilhos limpos,
foi matar a menina de vermelho.
Bastou um grito para o espanto
fixar-se na tarde.
Desceu gente de longe,
homens pisaram pedras,
mulheres jogaram noites na pressa,
os pais surgiram de súbito.
Um sangue ungia rodas e trilhos,
pedaço de vestido repousava em dormente.
Lanternas acesas na lida em vôo,
foram examinar a máquina,
o freio intacto,
as peças nuas,
a chaminé parada em pânico.
Rodara só
nos trilhos limpos.
Em desvio de falas,
colheram saudades da menina,
assistiram ao desfile das pausas,
contaram casos de nascimento.
A manhã parou na máquina,
os homens trouxeram cadeiras,
fizeram um círculo de vozes,
ergueram pedaços do crime.
Depois, tomaram café,
deram seus votos
e fitaram, em rápida apreensão,
a máquina condenada.
Levaram-na para um desvio,
destruíram os trilhos de um lado e de outro,
fundaram cerca de arame ao redor,
deixaram placa de madeira
com letras em quase cruz.
Quando as outras máquinas passam
nos trilhos mais longe
apitam avisos,
rodam mandadas,
contemplam a cela tênue,
plantas agora buscando as fendas
da quieta locomotiva.


Morreu na madrugada de sábado, 12, no Rio, o acadêmico Antonio Olinto. Tinha 90 anos e estava em seu apartamento, em Copacabana. Escritor, crítico literário, ensaísta e ex-adido cultural brasileiro em Lagos (Nigéria) e em Londres, Olinto ocupava havia exatamente 12 anos a cadeira de número 8 da Academia Brasileira de Letras (ABL), que até então era de Antonio Callado. O corpo foi velado na ABL para o sepultamento no Mausoléu Acadêmico, no cemitério São João Batista. Ele teve falência múltipla dos órgãos.
Olinto tinha prazer de frequentar as sessões da ABL, de organizar seminários e de viajar para participar de conferências. Esteve em mais de 40 cidades no mundo falando sobre cultura brasileira, de Seul, na Coreia do Sul, a Abidjan, na Costa do Marfim. É descrito pelos colegas como um acadêmico muito entusiasmado.
A idade avançada não o impediu de desfilar duas vezes no Sambódromo - em 2007, pela Mangueira, quando houve homenagem para a escola da Língua Portuguesa, e este ano, pela Mocidade, cujo enredo eram Machado de Assis e Guimarães Rosa. "Olinto foi uma das pessoas mais aplaudidas pelo público", contou o presidente da ABL, Cícero Sandroni, que estava com ele no carro alegórico, no último carnaval.Os dois eram amigos e companheiros de trabalho desde os anos 50, quando Olinto atuava como crítico literário. Foi nesta década que ele se casou com a escritora e jornalista Zora Seljan, que trabalhava, então, como crítica de teatro. Em 1962, Olinto foi nomeado adido cultural do Brasil em Lagos. Ele percorreu parte do continente em busca do estreitamento dos laços entre o Brasil e o continente africano.

A cultura local o inspirou naquela que é considerada sua fase mais importante, a da trilogia A Casa da Água, O Rei do Keto e Trono de Vidro, com traduções para 19 idiomas. "Ele era um farol brasileiro voltado para a África", apontou o imortal Marcos Vilaça. A última publicação de Olinto saiu em 2002, uma biografia de Ary Barroso. Ele também era pintor e chegou a fazer exposição em 2003.

Olinto (Antonio Olyntho Marques da Rocha) era mineiro de Ubá. Não teve filhos. Ficou viúvo em 2006, quando contava 50 anos de casamento. Desde então, abateu-se, embora mantivesse suas atividades na ABL. Em março, teve problemas de saúde e foi internado, mas voltou para casa, onde contava com a ajuda de uma secretária.

As cadeiras da ABL estão todas ocupadas desde novembro de 2008, quando o jornalista Luiz Paulo Horta tomou posse. Ele sucedeu Zélia Gattai, que morrera seis meses antes. Uma candidata que chegou a disputar com Horta, mas retirou sua candidatura no início do processo, pode vir a participar da eleição para a cadeira de Olinto: a professora Cleonice Berardinelli, especializada em literatura portuguesa. A vaga será oficialmente declarada aberta na próxima quinta-feira, ao fim da Sessão de Saudade.

5 de setembro de 2009

IRACEMA MACEDO


Queixam-se os poetas. Querem mais poesia. Pois bem. Hoje é sábado, olha-se a televisão os jornais e tudo que se movimenta ou agoniza. Para diluir a perplexidade do dia trago-lhes a poesia de Iracema Macedo tal como a conheci, no livro LANCE DE DARDOS, de 2000, que é um dos meus livros preferidos.

Iracema é de Natal, viveu muito tempo em Ouro Preto e agora leciona em Cabo Frio. Espero que a tenhamos cada vez mais perto. Vive entre as letras. É professora. Deve ser o máximo tê-la como professora. É uma felicidade tê-la como poeta. Poetisa, para os puristas. Por que a palavra poeta não pode ser comum-de-dois? Como artista, pianista? Afinal, hoje em dia cada um faz a sua linguagem.
Mas deixemos esta questão mal resolvida, a exemplo de outras, como o verbete púbis, por exemplo, e vamos à poesia de Iracema Macedo.

Quem quiser saber mais sobre Iracema, procure o Google. Ela está no excelente http://www.algumapoesia.com.br/ , de Carlos Machado, e a foto acima é do http://www.palavrarte.com./


A PESTE


Quem lavará o corpo do morto
e o sangue impuro talhado em sua face?
Por que logo eu que sou tão normal
compro mangabas por trinta cruzeiros
acho a vida cara
e olho o número que o hidrômetro marca?
Quanto repouso ser deste mundo
e embranquecer as roupas com água sanitária.
Mas o sangue do morto quem pode resolvê-lo?
Quem pode concluí-lo? com que panos?
Que planos?
Quem levará o morto e para onde?
Por que logo eu
que tinha o pequeno dom das coisas justas e mensuráveis
Por que me cabe ser isto
e fugir sem pressa enquanto a chuva inicia?
E nesta minha fuga omissa e farta
carrego apenas um punhado de palavras:
Vem dançar comigo, Lázaro
Não estás vendo que é verão e as nuvens passam
Não vês o quanto eu sou perecível
e driblo o vírus com preservativos e cartas?
Vem beber comigo um gole d´água
que a vida está seca e parca
e como diz o povo
é curta
e passa


O CÃO DENTRO DA NOITE

O cão dentro da noite exagera
em seu lamento primitivo
eu seria mais sã
se o permitisse
se o construísse
com minha risada perfeita
comminha fala sem rumo
O cão me quer
como se eu gerasse um filho
como se eu trouxesse meu pai para o mundo
como se eu me abrisse e ele me atravessasse
como se eu me devorasse
O cão me quer voraz
e triste como um exegeta
Visa decifrar-me
colher para mim um nome amplo
viu-me aqui quieto, parado
deu-me água e comida
lambeu meus pés com sua língua ferida


A LENDA DA VIÚVA MACHADO

Do fundo de minha casa
vejo navios que partem
e estou intacta
Os dias são os mesmos na província
mato crianças e como
e guardo os restos em arcas
Homens feridos me tocam
quando passo
vestida de luto sob o sol
Mandei construir as estátuas no jardim
Serei eu mesma as crianças que degolo?
É a mim que bebo e brindo?
Não pedirei a esta cidade
não sei a que vim, eu que sou monstro
Não sei por que matei
nem o que buscava
Do fundo de minha casa
vejo navios que partem
e estou intacta
Não sangro nem singro
sagro em silêncio
minhas impossibilidades


A BUSCA

Eu que estava acostumada
a me avizinhar das maldições
fiquei de repente tão pura
que pássaros negros me visitam
sem agouros
e as mariposas pousam
sobre mim apaziguadas
Pequenas traças devoram meu coração
enquanto durmo
Estou habituada a muitos parasitas
e impossibiliddades
mas contra todos que me pensam velha
sou uma menina ainda
e me debruço na janela
com os seios docemente
inaugurados

2 de setembro de 2009

VIVIANE MOSÉ É MÚSICA


parei de lutar contra o tempo
ando exercendo instante

acho que ganhei presença



Fui ao CCBB ontem, assistir Viviane Mosé no projeto "Toda palavra é música", que pretende traçar "um retrato poético e musical do romantismo, abordando as inspirações de grandes compositores da música erudita nacional e européia e textos de poetas brasileiros, reunidos pela essência romântica de suas obras", conforme o programa.

Sou meio avessa a programas do CCBB por causa das famigeradas senhas, que nos obriga a ir até lá não uma vez, como o desejado, mas duas, para pegar a tal senha.
Mas fui. Sou fã de Viviane Mosé e nesse caso vale a pena.
Mesmo que tivesse que esperar tanto a abertura da sala num lugar sem bancos ou cadeiras.
Pois bem, relato-lhes o que vi: Teatro II repleto. Preço bom, teatro bom. Mas o BB não alivia. Antes de começar o espetáculo, um telão na boca do palco com propagandas do próprio. Como no cinema. Qualquer dia venderão pipocas.

A função começa com Viviane Mosé, não no palco, mas na platéia, dizendo poemas de Álvares de Azevedo. Melhores na voz clara e de belo timbre da poetisa, mais a sua desenvoltura natural. Mas por que no chão? Não sei. Eu, que estava no lado esquerdo, senti reclamações do meu pescoço.
Ato contínuo - música - bastante música. boa, claro. Schumann.

Outra vez Viviane, desta vez subindo ao palco para recitar poemas próprios.
E aí aquela maravilha. Viviane Mosé tornou-se palavra, como quis.

Depois, novamente música. Bastante música.
Saí de lá para a fuligem da Presidente Vargas, para os vizinhos noturnos do CCBB, enfiados em sacos improvisados, a mulher despida para dormir.
E o que permanecia em mim era a palavra de Viviane, pois se Viviane é palavra, e a palavra é música, Viviane Mosé é música.

Ainda espero que o CCBB acredite mesmo que toda palavra é música, e dê à poesia um espaço definitivo, sem que dependa da música propriamente dita.

claro que não os deixarei sem um poema:

pessoas desmancham quando muito
quando não se quebram ao meio ou em pedaços
pessoas dissolvem aos pouquinhos
quando dá tudo certo
ou então se arrebentam por dentro ou por fora
pessoas às vezes explodem em tumores
quando não murcham devagarinho
pessoas dissolvem no chão

muitas doenças que as pessoas têm

são poemas presos
abcessos tumores nódulos pedras são palavras
calcificadas
poemas sem vazão

mesmo cravos pretos espinhas cabelo encravado
prisão de ventre poderia um dia ter sido poema

pessoas às vezes adoecem de gostar de palavra seca
palavra boa é palavra líquida
escorrendo em estado de lágrima



ôpa, um momento: também um de Álvares de Azevedo:

A lagartixa

A lagartixa ao sol ardente vive
E fazendo verão o corpo espicha:
O clarão de teus olhos me dá vida,
Tu és o sol e eu sou a lagartixa.


Amo-te como o vinho e como o sono,
Tu és meu copo e amoroso leito...
Mas teu néctar de amor jamais se esgota,
Travesseiro não há como teu peito.


Posso agora viver: para coroas
Não preciso no prado colher flores;
Engrinaldo melhor a minha fronte
Nas rosas mais gentis de teus amores


Vale todo um harém a minha bela,
Em fazer-me ditoso ela capricha...
Vivo ao sol de seus olhos namorados,
Como ao sol de verão a lagartixa.